Neiva Bohns / 2002


Diálogos entre a vontade e a razão:

rápido panorama sobre a produção de Mauro Fuke


[Texto sobre exposição retrospectiva no MARGS, de 03 a 29 de setembro de 2002]


Neiva Maria Fonseca Bohns

Professora de Arte Contemporânea da UFPel.

Doutoranda na área de História, Teoria e Crítica das Artes do PPGAV da UFRGS.



Artista intenso, que se move entre a vontade de povoar o mundo com suas invenções e o desafio de executá-las, Mauro Fuke (Porto Alegre, 1961) encontra-se extremamente ativo e na fase mais madura de sua carreira. A exposição que o MARGS traz a público é um panorama de sua trajetória artística, da década de oitenta até o presente, que dá visibilidade ao conjunto de sua obra, produzida no decorrer de vinte anos de trabalho incessante, redimensionando a importância de sua produção para a arte brasileira. Essa visão de conjunto permite observar os ricos processos pelos quais passou, desde os primeiros objetos marcados pelo hibridismo de formas e pelo excesso de volumes e texturas, até os projetos atuais, de aparência simples, mas que envolvem grande dificuldade de execução.


No contexto maior da arte brasileira contemporânea, Mauro Fuke faz um importante contraponto à produção do eixo Rio-São Paulo, e marca o território particular sobre o qual atua, ao fundir elementos de diferentes procedências: trata-se de um artista gaúcho, de origem japonesa, consumidor da cultura pop, que soube absorver e transformar as influências dos principais movimentos artísticos internacionais, e que é capaz de articular soluções técnicas tradicionais com os recursos mais avançados da computação.


As categorizações apresentadas a seguir não seguem qualquer ordem cronológica, mas têm o objetivo de facilitar a apreensão dos diferentes tipos de produção do artista, que nem sempre se manifestaram de forma contínua.


Objetos híbridos

Mauro Fuke freqüentemente aplicou sua reconhecida habilidade técnica a uma abordagem onírica da realidade, utilizando materiais não industriais: madeira, pedra, conchas, ossos, fibras. Os resultados foram peças abstratas, sem qualquer referência direta à realidade circundante, mas que já seguiam uma lógica particular a cada uma das peças, formadas por elementos associados, mas não necessariamente fixados num corpo escultórico único. Entre 1984-85, seus objetos montados a partir do uso arbitrário de um vocabulário formal fantasioso, não chegavam a constituir reproduções de elementos reais, embora fizessem alusão a eles.


Objetos metafóricos

Em suas obras iniciais, o artista costumava colocar pequenas esferas de pedra em suportes de madeira. As esferas podiam deslocar-se livremente se alguma força externa provocasse tal ação. Do contrário, a inércia poderia torná-las imóveis por um período indeterminado, o que já anunciava suas futuras preocupações com a passagem do tempo. Mais tarde, o viés cinético de sua obra levou-o a conceber e realizar a delicada Time (1986), uma estrutura montada sobre três pernas longas e esguias, com um mecanismo que se mantinha em contínuo movimento: uma esfera rolava incessantemente.


Entre 1986 e 1987, seu trabalho desembocou num tipo de imageria constituída por metáforas do sofrimento humano. Em suas construções até então rigorosamente abstratas começaram a aparecer cabeças em situações de terrível desconforto. Nestes casos, houve claramente um retorno à representação, e as obras subseqüentes funcionaram como alegorias de um período de crises tanto no âmbito pessoal quanto no social e político. Mauro Fuke manteve-se ainda por algum tempo criando obras que exploravam o campo indefinido entre a dor e o prazer, com fortes, ainda que indiretas, referências sexuais.



Estruturas articuladas

Esculturas com articulações, como organismos que se abrem e se fecham, e que podem ser mostrados em diferentes estágios, surgiram precocemente na sua carreira. É de 1985 a obra Bio Cassa, similar a um casulo que se expande e se retrai através de asas laterais presas a um eixo vertical. A idéia dos corpos que se abrem como flores, frutas, ou certos animais, sempre regulados pela proporcionalidade interna dos elementos, seria retomada em 2000.


Em 1992, Mauro Fuke, ao montar sua primeira Garra, iniciava um projeto de grande longevidade: esculturas móveis baseadas no mecanismo pantográfico – o mesmo das portas de elevadores antigos. A Garra expande-se no espaço através de varetas de madeira articuladas, calculadas matematicamente com o auxílio dos recursos da computação, e montadas de forma artesanal. Em 2001 criaria uma estrutura similar, que chamou de Árvore, em que cada uma das partes principais parece gerar ramos que guardam entre si as mesmas proporções.


Estruturas simples

Em 1993 o artista voltaria seu interesse para as experiências dos minimalistas norte-americanos, reduzindo sensivelmente a quantidade de elementos em suas obras, e explorando a noção de série, através da repetição de módulos idênticos. Em 1994 surgem objetos com estruturas fechadas, esféricas ou ovóides, projetados como construções arquitetônicas, e revestidos com um fino trabalho de marchetaria. Nessa fase, a computação o auxilia como uma ferramenta poderosa, que confere um nível de precisão impossível de ser alcançado manualmente. Para a I Bienal do Mercosul (1999), Mauro Fuke apresentou uma escada de aço que desenvolvia uma espiral aérea, tendo apenas uma das bases sustentadas no chão. A obra foi inteiramente projetada com recursos da computação a partir das medidas tomadas de um degrau de uma escada real.




Com se pode observar, na maioria dos casos, Mauro Fuke age em dois níveis distintos: o da concepção e o da execução, reunindo dois pólos que foram freqüentemente dissociados nos procedimentos artísticos das últimas décadas. O controle extremo de todas as fases da produção da obra fazem ver um artista-construtor por excelência, preocupado com questões de acabamento e de qualidade material das obras produzidas, coisa bastante rara no universo artístico atual. Contudo, outras questões, menos tangíveis, também impregnam seu trabalho. Desde o início de sua carreira, seus objetos foram construídos a partir de problematizações específicas que se explicitavam com e na execução da obras. Estas questões costumam girar em torno de regras de proporcionalidade, que relacionam as partes com o todo.


Para compreender a complexidade do raciocínio artístico de Mauro Fuke, é preciso perceber a existência de regras geradoras, baseadas em princípios geométricos, que dão sustentação a cada uma das peças, e criam uma lógica interna às próprias obras. Mas esse desafio não é o único, nem o mais significativo para o visitante da mostra. Mais importante ainda é reconhecer que, a despeito do rigor formal empregado na execução da peças, o que Mauro Fuke coloca em prática é um extraordinário exercício de liberdade de pensamento, criteriosamente oferecido ao público.