Jailton Moreira / 2002

ISSO E AQUILO

Mauro Fuke é meu amigo. Quero apenas qualificar e situar o lugar de onde partirá este olhar sobre sua produção. Esta antologia que compreende quase vinte anos da sua trajetória me compeliu a repassar os nossos encontros sistemáticos nesse período. Acompanho o trabalho do Mauro desde três anos anteriores a este recorte. Talvez desde quanto ele ainda não chamava seus desenhos a lápis com retratos distorcidos sob o efeito de uma grade deformada e suas caixinhas de madeira de meu trabalho. Se por um lado é uma visão comprometida por uma proximidade afetiva é, o mesmo tempo, privilegiada por estar perto nos momentos de sua formulação e exibição.

Desde a sua primeira e memorável exposição individual na galeria Tina Presser suas esculturas geraram uma série de interpretações entre o público que rapidamente se transformou em estereótipos. A habilidade técnica, a organicidade e a sensualidade no trato da madeira, o artesanal e o artesanato, a imaginação exuberante e o decorativo estavam sempre presentes nas palavras de quem mais gostava de suas obras e, simultaneamente, na voz de quem tinha sérias restrições sobre os mesmos objetos. Quando ouvia estas colocações me dizia sempre: não é isso. É claro que o convívio e as conversas me davam pequenos e importantes dados para poder pensar de outra forma. Nunca me detive em tentar dizer porque não era isso. Agora é o momento.

Para começar a falar sobre o não é isso devo admitir que também é isso, mas... Estereótipos não nascem à toa, não possuem geração espontânea. A única maneira de diluí-los é tentar enfrentá-los. Sua trajetória se movimenta em sentido crescente, sempre aditivo e em uma rota não linear, mas pluridirecional. Tentar alinhá-la sob os termos de uma evolução ou de um desenvolvimento seria o primeiro equívoco, pois rapidamente estas palavras se tornariam obsoletas. É necessário ao tentar compreendê-la construir um espaço mental multidimencional. Nos primeiros anos, a habilidade no trato com a madeira era testada a cada trabalho por meio de sucessivos desafios que ele próprio se colocava. Se por um lado havia o respeito extremo pelo material por outro suas potências estruturais eram provadas até o limite. No final dos anos oitenta este aprendizado já estava tão internalizado e automatizado que se transformou em caligrafia. Millôr Fernandes fala que o trabalho artístico ou é fácil ou é impossível, excluindo com humor a palavra difícil deste dicionário. Para Mauro, trabalhar com a madeira virou condição inquestionável para configurar seus projetos. O artesanal que evidenciava o gesto do autor à medida que se automatizava, se impessoalizava. De forma sutil aglutinou esporadicamente um repertório de outros materiais nas suas esculturas: cordão, cabelo, crina, ossos, slides, metal, luz. Todos em mimetismo com a madeira que permanece como um compromisso de fidelidade ou destino.

Neste processo em que o artesanal, embora presente, perde a ênfase é importante notar o uso da computação como instrumento de modulação de suas idéias. Mauro sempre desenhou precisamente suas esculturas. Alguns desses desenhos são exibidos aqui pela primeira vez. Executá-los é uma maneira de passar a limpo o projeto que por sua vez é uma maneira de passar a limpo uma idéia. Em 1994 quando tentava configurar a obra “Ball”, usou pela primeira vez um programa de computação para resolver com maior rapidez e precisão o seu problema. A computação chega não como uma quebra, mas como continuidade de um pensamento e por isso foi imediatamente incorporada. Mais adiante usou algoritmos como outra maneira de afastar a autoria e aceitar a surpresa da forma decorrente de uma proposição. Executar tais projetos foi submeter toda a manualidade à condição de puro instrumento técnico de um projeto e dividir a criação com a impessoalidade de um programa.

Com o uso da computação a sedução tátil das suas esculturas iniciais é substituída por superfícies de padrões geométricos com desconcertantes provocações visuais. Estas superfícies provocam contradições com os volumes dos objetos. Por vezes borram todo o volume habilmente construído ao cavar profundos abismos virtuais. É a imagem se contrapondo à materialidade e criando um afastamento na percepção, fazendo da escultura algo que ocorre no terreno do puramente ótico e expulsando qualquer apelo tátil sob a condição de que este destruiria a ilusão. Ao mesmo tempo como esquecer a beleza simples do objeto e assumi-lo apenas como suporte projetivo? Novamente não é uma questão de escolha entre isso ou aquilo (real versus virtual), mas uma apreensão oscilatória de ambos.

Sempre percebi no Mauro uma consciência plena de como sua obra era recebida e das expectativas que gerava. O orgânico não é interpretado somente por um prolixo uso de engenhosas formas curvilíneas aludindo ao mundo vegetal. A articulação por peças que lembram pela forma e funcionalidade ossos e vértebras também são elementos recorrentes. A madeira pode ser tomada como pele (superfície), carne (matéria flácida) ou como osso (estrutura). A organicidade de obras iniciais como “5a De34” (1984) e “A e Maki” (1985) é contagiada por estruturas arquitetônicas em obras como “Dez” e “Onze” (1987). Em 1999 e 2000 alguns trabalhos como a casa com hélices afasta qualquer conotação com o mundo natural. Da mesma maneira que a série de cubos virados pelo avesso por uma superfície marchetada ilusionista. Se estas características retornam nos últimos trabalhos isto só reafirma o espectro por onde o artista transita, onde o retorno a um determinado ponto não é voltar para trás, mas a ampliação de um campo de ação interno ilimitado.

Mauro Fuke é desses artistas que ajudam a reabilitar a palavra decorativo. Usada com arrogante desprezo em alguns comentários críticos, denota apenas o sintoma de um preconceito superficial. Porque não podemos pensar que o lugar para um objeto de arte se instalar não possa ser um apartamento com decoração convencional de classe média? Porque, para falarmos de instalação e das relações entre arte e lugar, devemos sempre pensar em primeiro implodir o distinto recinto para depois construirmos algo? Ou esperarmos a parceria paternal de um cubo-branco-que-tudo-pode de museu? Porque algo que vai ficar em cima de um balcão ou de uma mesa de centro não pode ser inteligente e deve ser necessariamente estúpido? Porque o bonito é feio? As esculturas de Mauro se adaptam nesses ambientes sem deixar de turvá-los por breves instantes, sem deixar de instalar uma perturbação de sentidos nesses locais. O decorativo significando adequação, escuta, ajuste e não pastiche e submissão.

As categorias da arte estão misturadas e é claro que a obra de Mauro Fuke pode ser vista diluindo os limites entre as noções de escultura desenho e objeto. Confesso ainda preservar um vício modernista de me perguntar se é possível estabelecer diferenças e especificidades, mesmo que temporárias, entre as antigas categorias. No caso do objeto, penso este como uma coisa presa aos limites da sua superfície e a escultura como algo que acaba dinamizando um espaço externo a ela. Ao vermos um prato ou uma mesa ou a roda de Duchamp a integridade do objeto como imagem reside no fato dele encerrar o discurso da sua presença dentro dos seus limites. De outro modo uma escultura de Rodin, ou Antony Caro ou os pisos de Carl Andre imantam o espaço ao seu redor criando uma espécie de campo de forças. Mauro afirma: sou escultor. Não se trata de assumir tal condição pelo fato de desbastar a matéria, suprimindo-a em busca de uma forma desejada. Vistas apressadamente as obras de Mauro podem parecer objetos já que não incorporam nenhuma atmosfera externa. Porém Mauro trabalha da superfície para dentro revelando um espaço interno denso, cheio de dobras e caminhos que só podem ser descobertos quando se entende o espaço como matéria. Ser escultor é pensar em três dimensões.

Um outro aspecto importante na obra de Mauro Fuke são as idéias sobre movimento. Elas já estavam presentes nos trabalhos iniciais como “Au Muta” (1984) com sua forma pendular e outras do mesmo período que oferecem pequenas esferas de madeira como elemento lúdico e imprevisível. Na série seguinte, articulações, pêndulos, engrenagens, portas e manivelas ampliam os convites para uma interação física com a obra. Induzidos ao toque pelo calor vermelho do cedro e suas formas provocantes, em seguida somos convocados a atuar e obter revelações. Muitas obras possuem um eixo narrativo secreto e estas ações colocam o público como detonador do desdobramento narrativo que permanecerá oculto. Em trabalhos como “Face 7 (T.N.S. Zappa)” o movimento é apenas sugerido como possibilidade. Na série de garras, o movimento pantográfico enfatiza as idéias de crescimento. O observador/atuador pratica um pas-de-deux com a obra e não se cansa de repeti-lo por maravilhar-se com a dança e seu desenlace. Estes movimentos expansivos também estão implícitos na escada que deu origem ao trabalho da II Bienal do Mercosul e nos volumes que recebem padrões de marchetaria como “Semi Esfera“ (1995) e “Splash” (1996) e nas estruturas como “Knot”(1998) e “Nuvem” (1999). Nestes, o movimento aparece congelado como se algo estivesse acontecendo frente aos nossos olhos.

Embora esta antologia contemple um universo significativo algumas coisas ficaram de fora, como a série fantástica de móveis (principalmente cadeiras e mesas) e objetos utilitários (final dos anos 80 e início dos anos 90) além dos recentes painéis de pastilhas. A importância em citá-los está no fato destes demonstrarem uma tendência constante do artista em problematizar os conceitos de arte, de artesanal, de artesanato e de design. A obra de Mauro ajuda a abolir as hierarquias entre estes termos. Os painéis públicos frustram as expectativas no artista de esculturas introspectivas. É novamente Mauro expandindo seu campo de ação.

Das muitas conversas que tivemos uma frase sempre me vem à memória quando vejo uma nova obra. Mauro me dizendo que um dos principais problemas da produção artística contemporânea era conseguir criar imagens confiáveis. Lembro que nesse dia associei com um fato que havia ocorrido anos antes em Veneza na Basílica dei Frari. Embora fosse uma cena corriqueira, naquele momento ganhou outro sentido. Estava contemplando maravilhado a “Ascensão” de Ticiano quando reparei que abaixo do quadro uma velha senhora rezava. Podia imaginar que ela rezava para a santa e não para a pintura (uma belíssima mulher, subindo em movimento espiralado que dinamiza todo o espaço, para um céu amarelo feito de nuvens/anjos, sobre os olhares admirados dos homens). Imaginei também que ela poderia estar rezando para a pintura, para Ticiano. Deixei a igreja com esta certeza e com uma ponta de inveja. A escultura de Mauro Fuke configura aparições imprevistas. Como não confiar naquilo que nos surpreende?

Jailton Moreira