Agnaldo Farias / 2002

O ENGENHEIRO DE MISTÉRIOS


Pensemos, para começar, em uma escada. Não na escada imponderável - A Escada - que Mauro Fuke projetou para um dia ocupar o Largo Glênio Peres, no centro de Porto Alegre; ponto pelo qual cruzam-se as trajetórias retilíneas de milhares de passantes indiferentes entre si, com os olhos baços, impelidos por sonhos e desejos. Não nessa escada, ainda. Pensemos antes numa simples escada, elemento arquitetônico indispensável mas cujo prosaísmo, presença constante na história, real e imaginária, da mítica escadaria de Jacob, por onde os anjos ascendiam do Paraíso, à soleira da mais simples das casas, torna-a invisível. Uma escada é algo com que mantemos uma relação monótona. Servimo-nos dela sem notar que se trata de um umbral por onde se ingressa em um outro plano. No geral só a percebemos quando o corpo, a nossa revelia, oscila bruscamente em razão de um tropeço ou apenas porque o ar parece rarefazer-se em função de uma seqüência de degraus que se vai revelando além da nossa capacidade de vencê-lo.

As infinitas versões sob as quais a escada se apresenta só servem mesmo para esconder o que nela há de extraordinário. Em um texto que integra seu livro mais cômico-científico, Julio Cortázar refere-se ao fato, certamente notado por todos, de que freqüentemente “o chão se dobra de tal maneira, que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamente variáveis”.* Como se vê, basta a descrição do princípio geral de uma escada para que percebamos que se trata de uma invenção das mais notáveis. Comparada com os componentes arquitetônicos habituais, a escada, talvez junto com a porta e com a janela, figura entre os mais importantes. Há de fato algo de rebarbativo no chão que se adere ao chão onde a casa já está assentada ou mesmo nas faixas escuras de pedra ou asfalto que recobrem a paisagem. Mesmo a dignidade dos pilares não faz mais que reiterar nossa esquálida verticalidade. Do mesmo modo o teto atua como uma versão plana do céu, cuja opacidade tristemente compensamos às custas de lâmpadas que pendem de fios e lustres. A escada não. Sem símile na natureza ela é um puro exercício de geometria aplicada, tão eficaz em seu intento de vencer alturas como as lentes com as quais Arquimedes queimou à distância as velas da esquadra romana que assediava Siracusa. Em tese, cada um dos degraus de uma escada genérica, standard, é um módulo cuja medida se adequa aos pés dos usuários; justapostos em linha reta perfazem a via de acesso entre um plano e outro. Enquanto ascendemos, cada degrau nos obriga a realizar um duplo movimento: uma ligeira elevação para além do plano onde estamos, seguida de um rebaixar discreto mas decidido. Cada degrau situado na altura dos olhos prenuncia o plano mais elevado, o andar superior; cada degrau pisado, uma reverberação do plano de onde se partiu.

A força desse aparelho prodigioso repercute na linguagem que dele faz uso para representar as incontáveis formas de ascensão ou queda a que qualquer um está sujeito. Galgar os degraus do sucesso encontra seu par na idéia aterrorizante de baixar até o último degrau. Num extremo, a glória, no outro o inferno e a decadência. É isto que sinalizam as igrejas situadas justamente nos cimos das montanhas. E são muitos os penitentes que, de joelhos, sobem suas escadarias. Como são muitos os devotos que as lavam em rituais festejados em que todos se ataviam de cores que contrastam com o branco engomado de suas roupas.

Falemos agora de A Escada. A obra monumental projetada por Fuke com o propósito de desafiar os passantes incautos do Largo Glênio Perez, atrapalhar o tráfego ininterrupto dos transeuntes, levando-os a percorrerem-na com os olhos e a se imaginarem avançando por seus degraus até o momento em que ela, caprichosamente, gira sobre si deixando que sua face inferior volte-se para cima, descaindo lentamente até tocar o chão para alçar-se novamente mais adiante e seguir assim, sinuosamente, como uma espiral desatada, afrontando a gravidade, indecisa quanto ao rumo a ser tomado, formando um desenho sensual, como uma melodia ritmada e previsível que fosse deixando um rastro à medida em que se desenrolasse no tempo; sempre a mesma, sempre diferente. A luz do sol, seu movimento em arco ao longo do dia, ao passo em que modifica a volumetria dos degraus variando a relação entre planos claros e escuros, despeja no chão o desenho cambiante de sombras, o plano nanquim de bordas denteadas torcendo-se em cúspides e curvas que se interceptam.

O contorcionismo da peça não é um resultado de um devaneio da geometria, ao contrário, deriva da variação calculada da altura, largura e profundidade do primeiro degrau, aquele que pousa ao chão oferecendo-se ao público, compreendido como unidade modular. A partir dessas três variáveis foram construídas seqüências numéricas; relações matemáticas que originaram uma tabela, base das medidas de cada uma das unidades que compõem a peça. Não há, portanto, um jogo com o acaso, como tampouco a forma obtida foi realizada a partir de um gesto virtuoso. O artista recusa mesmo a intuição por entendê-la demasiado volúvel e assentada em bases equívocas. Seu trabalho reúne cálculo e método extremados, o que está longe de significar que ele produz formas simples e previsíveis. Ao contrário, a contemplação do conjunto de obras produzidas ao longo de seus 20 anos de trajetória, obras invariavelmente realizadas em madeira, a matéria de eleição do artista, em cujo tratamento ele se revela mestre incomparável, como acontece nessa exposição organizada pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul, a primeira grande exposição dedicada a um artista inexplicavelmente pouco conhecido em termos nacionais, revela que sua trilha leva-o ao insólito. Como se a razão caísse em devaneio deixando seus projetos à deriva, fazendo com que coisas familiares se perdessem no desconhecido, ou também porque a insistência na ordem da ciência produz monstros.

A exposição consiste em cinco grupos de objetos, reunidos de um modo ligeiramente arbitrário, como talvez constate o leitor ao folhear este catálogo, de tal modo que várias das esculturas poderiam perfeitamente pertencer a outro grupo que não aquele em que estão apresentadas, mistura que se justifica também pelo fato de que as séries não foram desenvolvidas uma após as outras. O artista opera em várias frentes ao mesmo tempo e a recorrência de questões também é um dado a ser considerado.

Assim, da escada mencionada e que por motivos óbvios não figura na exposição, tem-se um grupo de volumes puros com superfícies trabalhadas em marchetarias; um segundo conjunto refere-se a obras compostas de partes articuladas entre si, desdobráveis, passíveis, portanto, de assumirem múltiplas feições. Um pequeno e expressivo elenco de peças relacionadas com a arquitetura confina com um extenso grupo de obras genericamente chamadas de escultóricas, que varia de estranhas esculturas semelhantes a organismos até superfícies aparentadas com aquelas que são estudadas pela área de topologia das ciências matemáticas. Por último, a maneira de uma coda fantástica e terrível, um conjunto de faces contorcidas, inscritas ou articuladas em elementos proto-arquitetônicos.

A apurada manipulação do artista sobre a madeira revela-se, de saída, o denominador comum de todas as esculturas apresentadas e ultrapassa aquilo que usualmente se espera de um artesão refinado. Nesse sentido ainda valerá a pena deter-se um pouco mais na escada monumental, por sua vez concebida para ser realizada em aço. O fato dela elevar-se efetuando inúmeras torções leva a crer que se trata de um objeto atacado por uma força interna capaz de levá-lo a escapar de seu desígnio funcional. Aparentemente, o ondear dessa superfície crespa resulta de um impulso de sublevação de algo que se encontrava adormecido sob o jugo da regularidade. Isso talvez aconteça porque nosso atávico desejo de ordem não pode prescindir de uma base material, de um corpo pertencente à natureza, seja ele pedra, metal ou como quase sempre é o caso, de madeira, uma matéria que, como tal, possui uma vida própria, animada por forças inescrutáveis. Ao invés de ocultar essas forças o artista empenha-se em sublinhá-las. Veja-se, por exemplo, o gosto pelo acabamento que perpassa todas suas peças. Suas superfícies lisas e polidas ao extremo, como que evocam as carícias sucessivas com que o artista culmina o processo de desbastamento da forma da madeira bruta. Tratadas assim, as peças, em particular aquelas de dimensões reduzidas, dotadas de uma escala que demanda do espectador um olhar aproximado, uma mirada escrutinizadora, expõem a delicadeza de seus veios, disseca as camadas que, ano após ano, foram dando corpo à árvore/matriz, deixando que se espraiem como ondas sutilíssimas cujas bordas têm a espessura de fios de cabelos. As superfícies convertem-se em peles, a matéria vegetal em matéria animal.

O artista é fascinado pelos organismos e seus mistérios. Não só por aquilo que lhes vai dentro, os encaixes e articulações de suas estruturas internas, como também pela forma exterior, tenha ela a inteireza de um ovo ou o aspecto estapafúrdio dos seres que se movimentam morosamente nos fundos dos oceanos. E sua tentativa de compreendê-los dá-se através dos seres igualmente extraordinários que sua imaginação, conjurada com o seu rigor, fabrica em retribuição, como também pelo trabalho de marchetaria efetuado sobre a superfície de anéis, volumes esféricos e ovais que, assim, quedam-se ilusoriamente estilhaçados por arestas virtuais de cubos e quadrados justapostos. A limpidez e a clareza das formas naturais são o campo perfeito para a aderência de um traçado geométrico, seu irmão gêmeo, embora contrário.

Há também os casos em que chapas espessas de madeira convertem-se em planos amolecidos, crivados de poros, vazados em orifícios regulares. O ar atravessa o interior dessas peças garantindo-lhes uma respiração suave ou fazendo com que suas partes se contraiam e se expandam em ritmos desencontrados.

A paisagem protagoniza alguns dos trabalhos relacionados com a arquitetura. Em um deles a placa plana de madeira converte-se na superfície de um mar encapelado sob o qual oscila o corpo frágil e diminuto de uma casa. O olho do espectador é irresistivelmente atraído para o nível em que o drama acontece, deslizando pelos pequenos cumes e vales de ondas lisas e brilhantes. Em outra peça, uma torre encarapita-se no alto de um agregado de pedras – feitas de madeira, como tudo o mais – redondas como seixos rolados nos leitos dos rios. O apuro da construção tem a delícia de uma obra de relojoeiro: espreitando seu interior de cima ou da porta de entrada, o espectador percorrerá com os olhos a escada que serpenteia colada à parede circular.

Escadas, janelas, o óculum pelo qual a luz inunda um ambiente, a casa, o abrigo é um tema de particular interesse do artista, o qual ele enfrenta seja através de versões miniaturizadas, seja através de soluções abstratas e oníricas.

Da arquitetura da casa à arquitetura dos corpos o que se tem são peles, modalidades de revestimento, como as frutas cujas embalagens ásperas e regulares são escudos que protegem os gomos de sua carne macia. A pele reveste a carne enquanto, por sua vez, a carne protege os ossos e a cartilagem. Os corpos se resolvem em camadas cada vez mais profundas, lógica que o artista retoma a partir de peças que se deixam descascar como cebolas, revelando a interdependência das partes. Dessa família surpreendem as garras constituídas de segmentos articulados e que podem ser estirados um a um ou em um todo monolítico à maneira dos dedos que se abrem e se fecham na gradação dos pequenos ossos arranjados em linha de que são feitos.

Encaixados, amarrados, atarrachados, atirantados... são inúmeras as esculturas compostas de partes distintas interligadas, partes que se dobram, que se abrem, que se fecham, que giram deslocando-se pelo chão. É também expressivo o número daquelas cuja unidade pode ser desfeita pela manipulação. Na maioria das vezes as partes se desejam umas as outras: às vezes se colam tão intimamente que só a diferença de tonalidades das madeiras empregadas os separa, em outras a junção acontece pela força de uma fibra vegetal tensionada e há ainda a via da delicadeza, como quando um elemento convexo aconchega-se num côncavo.

Há, por fim, o terrível desfile das faces, rostos em ríctus, cabeças decepadas e aprisionadas em máquinas de tortura, estruturas mirabolantes cuja finalidade não alcançamos entender embora saibamos que em cada uma delas está encerrada uma face: o emblema do ser. Nessas visões não há mais separação entre o homem e os objetos que ele engendrou. Suas próteses voltaram-se contra ele, os instrumentos que estendiam seu poder sobre as coisas, sonho de uma ciência que se pretendia aplicada, transformou-se em pesadelo.

Da face humana aos passos por uma escada inverossímel pendula a poética de Mauro Fuke. Uma trajetória que vem sendo criteriosa e vagarosamente construída, apoiada no rigor da observação e na capacidade de projetar, sonhar e realizar; que alterna os momentos de profunda disciplina intelectual com grande dissipação de energia física. Um caminho silencioso e singular. Produtor de mistérios duradouros.


Agnaldo Farias

Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da EESC / USP

Curador do Instituto Tomie Ohtake




* Instruções para subir uma escada, in Histórias de Cronópios e de Famas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1973.